8 de setembro de 2016

Bruno Pernadas, 23 de setembro, duplo lançamento (I)

Bruno Pernadas apareceu em apoteose com “How can we be joyful in a world full of knowledge” (2014). Dois anos depois regressa com dois álbuns ainda mais poderosos. São duas elegias da felicidade.

Rui Catalão pertence ao grupo dos privilegiados que já ouviram estes discos e escreve acerca de “Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them”.


«“Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them” é um disco feliz. Não sei se é um disco sobre a felicidade, mas a felicidade transparece em todos os seus poros (aceitemos que a música também tem pele: respira e transpira). É um disco feliz porque reflecte a felicidade de quem o fez.

Não posso afirmar que o Bruno Pernadas é mais feliz do que qualquer outra pessoa, mas a sua música parece abençoada por essa felicidade que começa nas ideias, passa pelo modo de quem as executa e chega intacta a nós, os ouvintes, que logo notamos a diferença entre uma coisa e outra, e acabamos o disco tão felizes como feliz é o disco.

Na realidade não terminamos completamente felizes. Quando o disco acaba, termina a felicidade de escutá-lo. Pior ainda: o disco termina com um tema que se despede da felicidade. São duas infelicidades: o disco acaba, e o último tema diz-nos que a felicidade também acabou.

Esse último tema chama-se “Lachrymose” e é tão belo e é tão triste como as mais belas histórias de amor que um dia terminam. Nem o Pernadas nem ninguém sabe o que é a felicidade até a felicidade terminar. A felicidade precisa de acabar para podermos dizer: “fui feliz”. Só que ao dizê-lo a felicidade já foi, e o que resta é um disco. Pormenor desportivo: “Lachrymose” é o único tema do disco que foi gravado integralmente por Pernadas em sua casa, enquanto decorria o Portugal-País de Gales para as meias-finais do Euro 2016. “O reverb que se ouve é o som da minha sala”, explica Pernadas: “É uma possível conversa entre duas pessoas, sendo que às vezes a pessoa A está a dizer o que a pessoa B está a pensar. Acaba por ser uma conversa que termina uma outra conversa que nunca aconteceu.”

“Those who throw objects at the crocodiles...” é um disco feliz, dizíamos. A maneira mais rápida de nos apercebermos de como este disco é um disco doloroso, é escutá-lo até ao fim, e depois escutá-lo logo a seguir desde o início, sabendo que muito do que originou e tornou possível este disco é a tal história de felicidade que chegou ao fim. Reparem no tema instrumental que tem o expressivo título “Because it’s hard to develop that capacity on your own.” Reparem ainda como a sequência de colagens em “Ya ya breathe” gera um efeito de vertigem, até regredir a um tempo mítico. É quando escutamos os seguintes versos: “What am I doing here, said the young man to the sacred bull, I travelled so far to get here, and yet I still don’t know why I must have done something wrong in the pathway,
That’s not the face I was hopping to see, that’s not it, That’s not my loved one.”

O título do álbum é inspirado numa relação tripla com: 1. o documentário “The man who swims with crocodiles”, sobre um costa-riquenho que desenvolveu uma estranha relação de amizade com um crocodilo; 2. uma placa informativa num parque da Florida; 3. a devoção que os antigos egípcios tinham aos crocodilos, a ponto de lhes reconhecerem poderes divinos. Resumindo tudo num aforismo moral: “Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them” é sobre o acto de ter de ir buscar de volta aquilo que ninguém nos pediu para dar.

Sabemos que estamos a ouvir um grande disco de duas maneiras. A maneira mais fácil é andar a ouvir esse disco há vinte, trinta, quarenta anos (se a companhia dura há tanto tempo, é porque é mesmo bom). A outra maneira é ouvir um disco e logo à primeira não conseguir imaginar o futuro da música depois dele. Como se o disco fosse tão bom a ponto de não acreditarmos que seja possível fazer melhor.


No caso deste “Crocodiles”, há uma alegria suplementar. A sua música é-nos familiar, mas de uma maneira estranha, já que nada chega a tornar-se verdadeiramente reconhecível. É como se Pernadas pilotasse um dirigível sonoro a uma altura e a uma velocidade em que reconhecemos algo, sem saber o quê. O que nós escutamos não é a música que o influenciou: o que nós escutamos é a própria viagem de escuta. Daí haver tantos movimentos, tantas dinâmicas, tantas mudanças. É uma música em jeito de bailado a atravessar a música.

Se observarmos cada um dos seus temas em forma de gráfico, torna-se notória a sua elaboração, estruturada por movimentos, com motivos, arranjos e efeitos de pormenor que tanto podem estar compartimentados num desses movimentos, como atravessar a totalidade do tema, ou apenas pontuá-lo. Há sempre qualquer coisa de rigorosamente metódico, na articulação das suas melodias, dos seus ritmos obsessivos, das suas magníficas harmonias. Nas suas transições lentas e rápidas. Mas se nos concentrarmos em cada segmento, isolado da sequência completa, estamos de regresso à simplicidade elementar das canções da nossa infância – é nesse tempo, em que a realidade se confunde com a magia, em que os factos fazem companhia à imaginação fantasiosa, que geramos a matriz de felicidade que só o final do disco revelará totalmente.

Há músicos, como Brian Wilson, ou Thelonious Monk, que fazem depender a sua escrita musical de uma regressão à infância. No caso de Pernadas, julgo que isso acontece pelo facto de ele dar aulas de música a crianças. Lembro-me de uma história, por ele contada, sobre uma aluna de oito anos que se queixava do seu violino ser muito pequeno e por isso ter poucas notas. O equivalente em Pernadas é nunca ter meios suficientes para ter o número de músicos que gostava para os seus arranjos orquestrais – mas mesmo quando o número não está lá, conseguimos mesmo assim alcançar a sua vocação orquestral.

É inútil comparar a música de Pernadas a outros músicos e estilos. Avancemos só um pouco na tentativa de comparação para mostrar até que ponto o exercício é estéril. Tomemos de exemplo o tema “Spaceway”. A ideia desse tema surge de uma cena do filme “Bullit”, com Steve McQueen. Cito o Pernadas: “Uma banda de jazz está a tocar uma cena tipo valsa, num restaurante, com a flauta como lead. Quando vi o filme adorei a música. Se calhar foi por isso que acabei por usar flauta.” Pernadas não se preocupou em saber quem compôs esse tema, mas preocupamo-nos nós: chama-se “Cantata for combo” e é do compositor argentino Lalo Schifrin. A relação entre o tema de Pernadas e o de Schifrin é no entanto meramente tangencial. Poderíamos acrescentar que o tempo de valsa, no tema de Pernadas, tem muito mais a ver com a abordagem modal de Coltrane em “My favourite things” e mesmo assim não estaríamos perto de acertar – é só outra tangente.

“Galaxy” e “Ya ya breathe”, dois temas longos, são ainda mais escorregadios nessa impossibilidade de se deixarem apanhar em antecedentes ou influências. “Galaxy” soa a disco de rock progressivo da escola de Canterbury, mas executado por uma orquestra dos tempos das Big Bands; “Ya Ya breathe” começa por apontar aos anos 90, a discos como “Moon safari” dos Air ou “California” de Mr. Bungle, mais a nostalgia pela sonoridade dos anos 70, ou pelos sons exóticos de Les Baxter nos anos 50, para depois incluir um daqueles solos de guitarra ao melhor estilo de Prince.

A música atravessa dimensões temporais e estéticas, é certo, abre-se a portais, avança por caminhos esconsos e estradas secundárias e tudo o que pretende é não estacionar, é continuar a sua digressão, de quem brinca ao toca-e-foge. O acto de citar, ou de dialogar com determinada escola ou obra, nunca chega verdadeiramente a dar-se.»

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