11 de setembro de 2016

Bruno Pernadas, 23 de setembro, duplo lançamento (II)

«Em “Worst summer ever”, para além de Bruno Pernadas na guitarra, participam sete músicos de jazz (com quem vem tocando desde os anos de estudante na Escola Superior de Música de Lisboa, assim como na Escola do Hot). Comparado com “Crocodiles” ou “How can we be joyful...”, este disco funciona numa realidade paralela do trabalho de Pernadas. É óbvio que, ao escutar esses dois discos, reconhecemos a formação jazzística de Pernadas. Mas também é óbvio que há muita coisa em “Worst summer ever” muito ao gosto do pop-rock.


Em “Crocodiles” (como já em “How can we be joyful...”) os músicos estão ao serviço de uma concepção que começa e termina na cabeça de Pernadas. Todo o processo é a exteriorização de um trabalho essencialmente mental. Trata-se de uma digressão interior pela música, um pouco à semelhança das trips psicadélicas. “Worst summer ever”, opostamente, resulta do encontro com um grupo de músicos. A gravação fixa o resultado desse encontro. É, genuinamente, um trabalho de grupo, a partir dos temas por ele compostos.

Mantendo a comparação com “Crocodiles”, o disco de jazz tem um som mais cru. “Queria que os instrumentos não soassem longe uns dos outros. Que se percebesse tudo o que está a acontecer, e que tivesse força como um disco de rock. Queria que o disco não tivesse muito som de sala, que fosse mais face-to-face”, explica Pernadas.

Salvo efeitos pontuais ou muito subtis com pedais e samples, “Worst summer ever” é um disco essencialmente acústico, mas com um som pesado, tendo em conta os parâmetros habituais no jazz. Se imaginarmos o intervalo que separou a produção musical do post-bop (ainda com instrumentos acústicos), e a sua transição para o jazz-rock (com sintetizadores e instrumentos eléctricos), “Worst summer ever” cria um tempo alternativo entre estas duas fases.

Onde os dois novos discos de Pernadas partilham a mesma coerência é no espírito de época que os inspira: ambos parecem ter sido gravados a pensar nesse período entre os anos 60 e 70, quando o trabalho de estúdio atingiu esse ponto de equilíbrio entre a captação de sons reais e a produção de sons sintéticos, entre a pureza da execução e o seu posterior tratamento.

Na música de Pernadas a escrita é determinante. O tema não é um mero ponto de partida para a improvisação, é já um território claramente delimitado. Cada um dos sete temas do álbum define tanto o território como as suas fronteiras. Não são tanto os músicos a revelarem os temas, são antes os temas que revelam os músicos (não é impunemente que Pernadas escolheu para gravar consigo músicos que conhece de há longa data). O jazz gosta muito de celebrar a sua liberdade, mas verdade é que vem sendo raro, mesmo entre os bons discos, haver um “songbook” de inéditos com uma identidade tão enxuta e segura de si como “Worst summer ever”.

O disco abre com “love vs love”, em quinteto, e parece avançar arrastando-se. É uma melodia cansada, que se repete com insistência, até João Mortágua, no sax alto, lhe descascar o alcance: a exaustão é apenas a aparência de um tema sobre o conflito.

“Granado wire”, em quarteto, mantém a mesma dupla Francisco Brito e David Pires na secção rítmica (agora sem o piano de Sérgio Rodrigues). Pernadas e Mortágua partilham os solos, com Pernadas a juntar-se à secção rítmica nos solos de saxofone. O tema parece que vai terminar em fade e depois ressurge com uma malha de guitarra que serve de base para o solo final de David Pires na bateria.

“September 4th”, em quinteto, apresenta uma nova secção rítmica: Pedro Pinto (contrabaixo) e Joel Silva (bateria), mais Pernadas. Solistas: Sérgio Rodrigues (piano) e Desidério Lázaro (sax tenor). À semelhança do tema anterior, o tema divide-se em dois, como que aludindo a uma cena de terror: a primeira parte monta o suspense, repleto de detalhes e nuances; segue-se o efeito de martelo no desenlace da segunda parte, com Lázaro num solo mais físico, de rajada.

“This is not a folk song” é daqueles slows que parecem muito antigos. À semelhança de “Lachrymose”, nele se revela aquilo a que se pode chamar o efeito déjà vu de Pernadas: é quando julgamos reconhecer algo que nunca escutámos antes. David Pires na bateria é, digamos assim, o ouvido do tema: acompanha Pernadas, serve-lhe de contratempo, sola no refrão, e interrompe-se ou reduz-se ao murmúrio.

O tema seguinte é uma valsa lenta, ainda em trio, em que é usado um sample contínuo. “Worst summer ever” e “Before it gets too late”, em formação de sexteto, fecham o disco, com Mortágua e Lázaro juntos nos sopros. São talvez os temas em que mais desconfio da influência, tão invocada por Pernadas, que Rui Cardoso teve na sua música (para além de ter sido seu professor, Rui Cardoso tocou num dos grupos favoritos de Pernadas, os Salada de Frutas).

“Worst summer ever” alude a um mau ano, em que parte substancial do material do disco foi escrito. Mas segundo Pernadas, o Verão de 2016 foi ainda pior para ele. Para nós, público, o Verão de 2016 ficará registado como o Verão das grandes felicidades colectivas: a vitória no Euro 2016, e o triunfo musical de, numa só pernada, surgirem dois incríveis discos do maior talento musical português da sua geração. Tão cedo não voltaremos a escutar em disco tanta felicidade.»

Rui Catalão

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